O piolho Calapez não tinha gostado nada daquilo. Em linguagem de gente grande chama-se àquela confusão toda que tinha acabado de acontecer Tsunami. Sim, era isso, porque ele já tinha visto na televisão. Uma onda gigantesca que levava tudo à sua frente, derrubava casas, árvores, gentes, carros, enfim, destruía vidas inteiras... E ele agarrado, a tiritar, àquele tronco forte que estava, é certo, escorregadio, à espera que a tormenta passasse de vez e que alguém desse sinal de vida. Mas parecia que desta vez a onda tinha sido bem forte. E grande. Ele já tinha ouvido contar que existiam ondas assim. Tempestades cruéis e assassinas que destruíam famílias inteiras. Mas, ele, ainda tão pequeno, nunca tinha visto nada parecido.
O piolho Calapez continuou à espera. Esperou ainda durante algum tempo. O tronco deixou de estar escorregadio. Ia secando. Mas no íntimo, o piolho Calapez sentia que lá longe, onde a sua curta vista não alcançava, porque ele também era tão míope, algo se passava. Havia agora uma espécie de ventania que ia e vinha cada vez se aproximando mais. "Não, isto não deve ser coisa boa!" pensou ele com os seus botões, mas o piolho Calapez não tinha vestido o fato dos botões, tinha vestido o fato do fecho éclair, mas achou que naquelas circunstâncias não devia estar a ligar a esses pormenores e passou à frente, "esta espécie de vendaval, depois de uma tempestade, não é nada bom sinal! Então não dizem que depois da tempestade vem a bonança? e já agora, o que é isso de bonança?" ficou a pensar o piolho Calapez.
Estava ele nestes pensamentos quando dá de caras com a última personagem que pensava encontrar naquela altura e provavelmente tu também, mas na verdade é que quase até chocaram de frente, de tal modo vinham embrenhados nos seus pensamentos, e se julgavam sozinhos por aquelas bandas.
- Não estou a acreditar! Tu por aqui?- perguntou-lhe a outra
- Não. Tu é que não devias estar aqui. Não é sítio para ti. Isso não. - retorquiu o Calapez.
- Vê lá, oh, pequenote, como é que falas com uma laide! Com uma senhora, pois então!- disse a outra toda inchada.
- Mas eu nem estou a ser mal educado! Só estou espantado! Vieste com o tsunami?- perguntou-lhe Calapez cada vez mais intrigado.
- Com o quê? Já vi que a lavagem te afectou a cabecinha! A moleirinha! isso... que tens aí! - e a outra, com desplante olhava para um lado e para o outro pronta para ferrar as unhas.
- Oh Alice! se me explicares como é que vieste aqui parar talvez eu perceba, não é?- vai dizendo Calapez mais para distrair a carraça dos seus intentos do que para proteger o seu território. Afinal aquilo não é sítio para uma carraça. É que não é mesmo.
- Sempre me disseram que eras muito atrevido. Perguntador. Que ainda estavas na idade dos porquês. E realmente... está bem.... eu explico: há um cão cá em casa. Deram-lhe um banho. Um GRRRRRannde banho e eu.... fui arrastada. Pronto. É a minha história.
- É a tua história? E então como é que apareces assim do nada, aqui?
- Eu não apareci do nada! Ninguém aparece do nada! Estava quietinha, num cantinho da banheira. Fui-me arrastando até lá. Depois a água chegou lá e eu encontrei esta casa também bem simpática. Bem sei que hoje houve grande confusão para estas bandas. Mas nada de grave, nada de grave...
- Isso dizes tu! Nunca apanhei um susto destes! E de vez em quando vem um vendaval que leva tudo à frente. - diz o piolho Calapez com um arrepio.
- Já sei! Deve ser o Pente!
- Quem?
- Não é quem, é o quê! É a arma mais poderosa que eles têm conta os piolhos! Chama-se Pente e é terrível. Apanham-nos todos! Ah!Ah!Ah! - e a carraça Alice abana as pernas e os braços que são todos muitos, com as gargalhadas.
- Pois eu não sei onde está o motivo de tanta graça! Isso quer dizer que eu estou tramado, é isso? - pergunta Calapez com uma lagrimita a trair-lhe a emoção. A carraça Alice só então dá conta do disparate e pára logo de fazer folguedo com toda a história mudando num ápice de atitude.
- Oh Calapez, tu nem penses nisso! Claro que não! Nós vamos resolver o assunto! Nem sei onde estava com a cabeça! Ai, ai! Às vezes sou um bocadinho idiota, o que é que queres? Vamos já arranjar um plano de fuga! Bem, eu, realmente, estava a pensar ficar por aqui, mas como tu dizes, isto não é o meu sítio, ou como dizem os meus amigos brasileiros isto não é a minha praia! E o que é que dizes de ir até ao Brasil, Calapez?
- Até ao Brasil?
- Muito calor, muito sol, muita praia... hummm! Uma maravilha!
- E como é que vamos até lá?
- Deixa comigo. O importante agora é sairmos daqui. Mas conto contigo. Vais ter de subir esse tronco até lá cima. Sem ninguém te ver. E depois diz-me onde está a banheira.
O piolho Calapez nem respondeu. Sentiu que aquela era a missão mais importante da sua vida. E também a mais perigosa. E iniciou a escalada. Ainda nem ia a meio sentiu um violento abanão muito perto de si e viu que o vendaval cada vez estava mais próximo. "O vendaval? O Pente. Agora já sei que é o Pente! Mas se eu nem sei bem o que é um vendaval sei lá eu o que é um Pente?!" pensava o piolho Calapez enquanto continuava a subir o tronco que cada vez ia ficando mais fino e mais claro e por isso muito mais perigoso, deixando-o a ele muito exposto.
- Já vês alguma coisa?- gritou-lhe a carraça Alice.
- Ainda não, nada! - respondeu Calapez danado por ser tão míope.
- Vá lá, não podemos ficar aqui o dia todo. Senão....
Senão... ele bem sabia o que é que acontecia. O Pente. Agora ele já sabia como é que era o fim dos outros que nunca mais voltavam. Caíam nas garras do Pente, o Demolidor, ou o Pente, o Carrasco. Bolas, afinal inventavam sempre monstros para acabar com todas as espécies. Mas espera lá, a carraça Alice não parecia ter medo do Pente. Será que ele não lhe faria mal a ela? Tinha que lhe perguntar. Mas não era agora. Porque agora ele estava a ver uma grande banheira branca....ops.... lá vem outro grande abanão. O piolho Calapez agarrou-se com força ao tronco que agora era tão fraquinho e transparente como pode ser a ponta de um pequeno fio de cabelo loiro de um menino, e lá andou aos trambolhões, de um lado para o outro, sentindo passar junto a si os dentes do Pente, tão juntinho, tão juntinho, que mesmo fechando os olhos quase o conseguia ver, e vocês sabem que o piolho Calapez até é um bocadinho míope.
Vá lá, depois de alguns momentos de grande aflição, o vendaval passou e o Calapez abriu os olhos e jurou que se escapasse daquela ia mesmo para o Brasil e nunca mais voltava. Mas primeiro tinha que avisar a Carraça Alice.
- Ei! Alice! Estás a ouvir-me! Ei! Pssst! - gritou ele quase em sussurro com medo de que os humanos o ouvissem o que é um completo disparate porque não há memória de alguma vez algum humano ter ouvido um piolho falar. Mas adiante, ele estava nervoso, por isso a gente desculpa-lhe estas coisas!
- Estás a falar tão baixo! Não oiço nada! - disse a Carraça Alice.
- Desculpa! Acho que estou a ver uma banheira - disse ele, agora mais alto.
- Achas ou tens a certeza? - perguntou-lhe Alice que era muito previdente.
- Se não é uma banheira é um lavatório; eu não tenho muita experiência destas coisas. Mas qualquer um serve, não?
- Qualquer um, qualquer um, não é bem assim! Porque numa banheira estamos mais à vontade! - replicou Alice.
- E o que é que eu faço? - perguntou Calapez pendurado no cabelo, sentindo que a sua vida corria mais perigo do que nunca - não posso continuar aqui.
- Desce! Já falamos. - disse Alice.
Calapez voltou a olhar para a grande superfície branca que nem tinha fim e pensou mais uma vez que só podia ser uma banheira. Também pensou que se era para dar o salto, era nesse momento, pois mais tarde poderia ser tarde demais. E voltou a arrepiar-se só de imaginar o Pente e da sensação que tinha tido ainda há pouco quando ele lhe tinha passado tão perto.
No entanto, iniciou a descida o mais depressa que foi capaz para discutir com a carraça Alice o que fariam dali para a frente. Ainda sentiu um abanão, mas mais ao longe, o que não o descansou muito, porque eles não eram padronizados, tanto podiam estar perto como longe. Quando estava quase a chegar perto do solo pulou e ainda foi a tempo antes que a carraça Alice cravasse alguma unha. Estava com fome, hã!
- Bom, eu aposto que é uma banheira e que devemos ir já - despejou ele assim de rajada.
- Gosto de ver que ainda tens fôlego, Calapez! E não tens fome? Não te apetece uma sandocha? - convidou ela, gulosa.
- Não, não. Primeiro o trabalho. E depois, comemos. Acho que é mais sensato. - retorquiu ele, continuando a achar que aquele não era o sítio da Carraça Alice. O que é que querem, logo havia de ser um piolho com escrúpulos!?
- És capaz de ter razão! Se atacamos agora vamos chamar as atenções. E isso não é bom. Para ninguém. Ok, então tu apostas que aquilo é uma banheira? - perguntou Alice.
- Tenho quase a certeza. É muito grande. Nem lhe consigo ver o fim. - diz Calapez, acenando com a cabeça.- E acho que está na altura de dar o salto. Agora.
- Estás doido? Um piolho e uma carraça a saltarem para dentro de uma banheira quando o Pente está a trabalhar? Isso é um autêntico suícidio. - reclamou a Carraça Alice.
- Então o que fazemos? Se ele sai da banheira não sabemos onde vamos parar...
- E aí adeus Brasil! Também tens razão! - e enquanto pensa a Alice começa a enterrar uma unha. Calapez olha para ela e faz-lhe sinal. Ela faz de conta que não percebe. Ele continua a fazer-lhe sinal. Ela, moita! - Alice, então?! - ralha Calapez
- Ai, desculpa! Quando me enervo, dá-me para comer! - diz ela tirando a garra bem afiada donde brotam gotas de sangue.
- Pois, mas não nos podemos dispersar! Nem cometer erros! Pode ser fatal!
- Então tu dizes que esta é altura para o salto?
- Exactamente. Deixamo-nos ir. Assim como quem não quer a coisa. E lá de cima não sabem se foi o Pente ou não. E nós vamos direitinhos ao ralo e iniciamos viagem! Ficamos por nossa conta mas isso já nós sabíamos!
- Sabes Calapez?! És capaz de ter razão! - disse Alice - Mas temos que ir um de cada vez.
- Claro! E tu não podes dar muito nas vistas! Ninguém está à espera de ver cair uma carraça da cabeça de uma criança!?
- Dizes isso como se fosse uma aberração?! - escandaliza-se Alice.
- Não, nada disso! Mas pode levantar suspeitas! E nós não queremos isso! - apressou-se Calapez a explicar para não ferir as susceptibilidades de Alice.
- Pois, mais uma vez és capaz de ter razão. Então por isso, vais tu à frente e depois fazes sinal e dizes-me se posso ir eu a seguir.
Calapez engoliu em seco. Ele ainda era um piolho pequeno. Não tinha grande experiência de vida, muito menos de aventuras e aquilo sim era uma senhora aventura. E Alice estava a mandá-lo a ele à frente, a trilhar o caminho, sozinho, como se ele fosse o dono do mundo, neste caso como se ele fosse o dono de uma banheira. Ai meu Deus! Para o que ele estava guardado. Voltou a engolir em seco. E falou : " Está bem. Eu vou. E chamo-te assim que lá chegar abaixo. " E dizendo, Calapez fechou os olhos, apertou o nariz como se fosse dar um mergulho ( e não é que ia mesmo?) e deixou-se cair. Caiu, caiu, caiu e parecia que nunca mais chegava ao chão, nunca mais chegava ao fim. Continuava de olhos fechados e não conseguia arranjar coragem para os abrir. Até que... suavemente Calapez sentiu os pés molhados...
A banheira ainda tinha alguma água no fundo e também umas dezenas de amigos de Calapez, alguns já sem vida, infelizmente por obra do Pente, outros, de mochila às costas na direcção do ralo. Calapez quando viu toda aquela agitação primeiro ficou muito feliz mas logo em seguida assustou-se pois achou que assim poderia dar nas vistas e isso não era nada bom. Além disso, a sua amiga Alice aguardava por ordens suas lá em cima, muito lá em cima, e ele tinha que a chamar!
De repente, quando Calapez olha para cima para chamar Alice não vê nada. A sua casa tinha desaparecido. Calapez fica horrorizado. Mas para onde foi a sua linda casinha, tão quentinha, tão loirinha, tão aconchegada. E agora onde está Alice? Ainda por cima aquela casa não é o sítio de Alice. E agora o que é ele faz? Para onde ele vai? Calapez começa a andar à roda num rodopio de desespero sem saber o que fazer. Ele sabia que alguma coisa havia de correr mal. Aquele Pente era de mau agoiro. E agora? E agora?
- Calapez? Rapaz? Parece que viste um fantasma!
Calapez olha e esfrega os olhitos míopes com alguma força o que não ajuda nada para quem quer ver melhor.
- Sou eu, sim, sou eu! - diz Alice prazenteira.
- Mas como, como? Eu nem tive tempo de....
- Eu sei - interrompeu Alice - mal tiveste tempo de saltar. Mas assim que eu senti o Pente parar vi logo que tinha ser naquela altura. Por isso nem esperei por ti. Saltei logo a seguir. E aqui estou.
Calapez ficou tão contente que correu a abraçar a Carraça Alice. - E agora vamos para o Brasil? - perguntou.
- Direitinhos, Oh se vamos! - respondeu Alice. E os dois puseram-se na fila para o ralo na banheira que estava cheia de piolhos com mochilas às costas, outros com lêndeas ao colo, piolhos a fazerem birras, outros a namorar, alguns a discutir, uns a quererem passar à frente, enfim coisas normais de grandes ajuntamentos. Mas nada disso importou ao Piolho Calapez e à Carraça Alice porque eles estavam bem felizes porque iam para o Brasil.
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1 comentário:
Uau! Mas que grande trabalho! Ufa! Está mt bom! Entretanto tive uma ideia que pode dar origem a uma série bem original. Lembras-te do nosso projecto o "Zoom". Então podemos aplicá-lo a estes livros. Haverá sempre mts ideias p mais histórias e dá sentido à série. (não direi mais aqui porque acho que é uma ideia mt boa e como sabes este blog não é totalmente privado. Depois explico melhor!) Bjsmil e PARABÉNS!
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